A visita de Obama à América Latina: e o Brasil com isso?
Em momento de expansão dos EUA, o Mercosul e o Brasil são a pedra no sapato para o crescimento do livre comércio na região
Foi publicado na Carta Capital um texto de Graciela Rodriguez, coordenadora do Projeto Mulheres no Desenvolvimento Sustentável da Região Amazônica, falando sobre as intenções e desdobramentos da visita do presidente Barack Obama à Argentina para o continente sul-americano.
Copiamos o texto a seguir. Boa leitura!
Por Graciela Rodriguez
Ecoar no Brasil o que acontece fora do país é tarefa habitualmente
difícil. Com a cobertura da visita de Obama a Argentina não foi
diferente. Foi muito desanimador o espetáculo da mídia nacional,
principalmente a televisiva, que só lhe destinou os escassos minutos em
que Obama se referiu ao Brasil, para aparentemente não dizer nada com
retórica grandiloquente.
Entretanto, a visita que foi realizada coincidindo com os 40 anos do
golpe militar genocida que nosso país irmão sofreu em 1976, não pode
passar assim despercebida. A começar pela afronta que significou essa
presença simbólica, numa tentativa de resignificar dia tão especial para
a história e memória não só da Argentina, como também de muitos dos
países da região, que viveram golpes semelhantes e que tiveram
posteriormente que sobreviver a “Operação Condor” no caso dos países do
Cone Sul das Américas.
Chega a ser de uma hipocrisia poucas vezes assistida a visita de Obama e
Macri
ao Parque da Memória, sem sequer uma condenação explícita à intervenção
que os EUA tiveram no golpe, como também dos benefícios que resultaram
do
golpe econômico-militar para as empresas da família Macri.
A promessa de Obama de tornar públicos documentos sigilosos sobre a
atuação dos EUA em relação à ditadura militar na Argentina foi
considerada no mínimo insuficiente pelos organismos de Direitos Humanos
do país, que não acompanharam os mandatários na visita ao Memorial.
Ao mesmo tempo, chegou a ser nauseabundo ver o presidente argentino
chegar pela primeira vez a esse Memorial para realizar declarações como
as de “que não exista nunca mais violência política nem institucional”
no país, malabarismo retórico que reafirma a velha teoria dos dois
demônios, e culminar com “nunca mais divisão entre os argentinos” famoso
eufemismo utilizado para deter as investigações nos processos de
memória e verdade contra o genocídio por parte do Estado e os crimes
contra a humanidade praticados pelo golpe militar.
A magnitude das manifestações populares no dia 24 de março, junto ao
reconhecimento do genocídio, que de fato significaram os atos realizados
pelos dois mandatários em homenagem às vítimas do terrorismo de Estado,
mostram a outra face da moeda e servem de perspectiva reconfortante.
Entretanto, não para por aí a importância simbólica e concreta desta
visita, que não foi motivo de nenhuma reflexão na imprensa brasileira.
Evidentemente, não é nada casual que esta visita do presidente americano
tenha acontecido poucos dias depois da visita do presidente da França,
François Hollande.
De fato, ambas as visitas devem ser lidas como uma legitimação ao
restabelecimento na Argentina de um governo neoliberal, que nos
primeiros cem dias de mandato, já promoveu a implementação das
conhecidas políticas de ajuste econômico, que aliás, foram justamente
motivo de elogio do presidente norte-americano, e que também convocou
Macri a “transformar a Argentina em um aliado universal dos Estados
Unidos”.
Claro que para tanto encômio entusiasmado, também somou pontos a
recente negociação pelo atual governo argentino do acordo para pagamento
aos especuladores dos “
fundos abutres”, outro motivo de elogios de Barack Obama.
Mas talvez, além destes sinais evidentes do apoio mostrado pela
visita, o motivo da mesma tenha usufruído de menos evidência pela
imprensa e esteja mais relacionado com o momento geopolítico que vive a
região da América do Sul e as disputas pela hegemonia global.
A grave
crise política e econômica desencadeada
no Brasil por setores políticos e empresariais da direita do país,
somada ao avanço dos acordos de liberalização comercial como o TPP que
vem ampliando seu espectro de apoio entre os países da região, mais as
constantes ameaças e críticas que sofre o MERCOSUL e também a UNASUL
como perspectivas de integração regional estão entre as principais
razões políticas desta polêmica visita e possivelmente no cerne dos
quatro acordos de cooperação e o
memorandum de entendimento assinados pelos mandatários.
A visita de Obama a Cuba e depois a Argentina é um evidente esforço
para recuperar a hegemonia norte-americana na América Latina, cada vez
mais sobre a
influência econômica da China, que tem ampliado com vigorosos investimentos sua presença na região.
Por outro lado, o MERCOSUL e a União de Nações Sul-americanas,
(UNASUL) em termos políticos, têm sustentado uma perspectiva de inserção
global mais autônoma para a região. Estes são com certeza alguns dos
principais elementos que provocaram essa necessidade de recuperação do
“pátio traseiro” num momento crucial da recente investida neoliberal que
varre o mundo.
As estranhas declarações da Ministra de Relações Exteriores da
Argentina, Susana Malcorra, feitas pouco antes da visita de Obama,
anunciando que seria possível acionar a cláusula democrática contra o
Brasil que poderia assim sofrer “uma desvinculação temporária”, podem se
tornar muito perigosas se entendidas no contexto das resistências
brasileiras à abertura do Mercosul, tanto nas negociações com a União
Europeia, quanto à aproximação ao TPP ou até ao estabelecimento de novas
negociações de liberalização comercial.
Vale lembrar que o Brasil, dentro do Mercosul, é um dos países do
mundo com menos acordos de livre comércio assinados, e sua saída, ainda
que temporária, poderia dar lugar a animar propostas ainda um pouco
dissimuladas de aproximação ao TPP e outras.
A política externa dos governos Lula e Dilma, especialmente do
primeiro, mostrou a possibilidade de um caminho de multipolarização do
mundo, com novas parcerias comerciais e de cooperação que não
exclusivamente as Norte-Sul, baseadas na expansão do mercado regional
através do Mercosul e de acordos regionais de cooperação.
Neste momento a concretização da política expansiva dos EUA e
consequentemente da UE, precisam da liberalização comercial irrestrita
do TTP e também do TTIP, para retomar a expansão do capital
norte-americano, diante do expressivo crescimento chinês na Ásia e sua
expansão crescente na África e América Latina. Nesse cenário, o
Mercosul, como também o próprio Brasil, são a pedra no sapato para a
expansão do livre comércio na região.
Brasil, que teve papel central na resistência a ALCA, deve ser
“recuperado” para esta reciclagem do bloco que está sendo montada pela
dupla Obama/Macri. Daí a importância de olhar para fora. Veremos mais um
motivo para nossa direita golpista, senão talvez o principal...
*Graciela Rodriguez é coordenadora do Instituto Equit, membro da
AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras e da REBRIP – Rede Brasileira
pela Integração dos Povos. Participante do GR-RI.
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